A Bíblia como Vida
Chegamos à penúltima etapa de nossa caminhada buscando conhecer as informações gerais sobre a Bíblia. Caminhada um tanto longa, mas necessária, pois sem ela ficaria difícil compreender como é que um conjunto de livros levou aproximadamente 1.200 anos para ser concluído e mais uns 300 anos para ser definido e aceito como a Palavra de Deus para a humanidade. Para o judaísmo, como vimos, o Livro Sagrado se encerra no Antigo ou Primeiro Testamento. Para os cristãos, a caminhada continua até o estabelecimento final do cânon. Mas, é interessante observar que a Bíblia continua suscitando discussões, análises, estudos, controvérsias, pesquisas científicas, etc., até os dias de hoje e, temos certeza de que tudo isso continuará pelos anos vindouro, pois a humanidade ainda tem muito a aprender com essa grandiosa biblioteca e, principalmente, com o maior mestre de todos os tempos, que continua a missão que o Pai lhe incumbiu, através daqueles que creem em sua Palavra.
Estamos
acostumados a considerar a Bíblia somente como Livro. Mas devemos ter em mente
que esse ‘livro’ não se entende sem o povo, sem a comunidade em que
surgiu, sem a Vida daquela gente, sem sua fé em Deus.
Antes
de tudo, ela é o retrato dos acontecimentos, da vida, dos fatos reais,
históricos que transcenderam a vida de um homem, de algumas tribos, de um povo.
Por exemplo:
-
A emigração de um homem, Abraão, que deixa sua pátria, seus parentes, a casa
paterna e se lança a um futuro incerto (Gn 12, 1-3), no século XVIII
a.C.
-
A experiência salvadora de algumas famílias, à frente das quais se colocou
Moisés para libertá-las da opressão (Ex 2, 23s), séc. XIII a.C.
-
Os momentos críticos em que a própria existência do povo que ia
formando e se considerava o ‘povo de Deus’ estava em perigo pelas
provocações dos filisteus (1 Sm 9, 16s), no século XI a.C.
-
Os tempos da monarquia, com um poder centralizado e autocrático que se vai
degenerando (1 Sm 8, 11-17; 2 Rs 5, 13; 2 Cr 10, 4), dos séculos XI
ao VI a.C.
-
Os tempos do exílio, quando Jerusalém foi arrasada (2 sm 6-7), o Templo
incendiado ( 1 Rs 6-8), a Arca destruída (1 Sm 5-6 ), e os cidadãos de
destaque deportados para um país estrangeiro (Livro das Lamentações),
entre 587-538 a.C.
-
O fato concreto, histórico é a primeira coisa que acontece: ‘Vós saístes,
vos mudastes de um lugar para outro’. No entanto, eles, descobrem que esse sair
tem um sentido: é uma ‘libertação’, é uma experiência de
libertação: ‘Saístes da casa da escravidão’(Êx 13, 3-16; 19, 4-8; Dt 1,
30-33; 4, 32-40). Por fim, aprofundando-se na meditação dessa experiência
humana, a saída do Egito, descobrem Deus nela. Essa experiência de libertação
foi obra de Deus: ‘Deus vos libertou’ (Êx 12, 51). Essa fé é expressa
no culto e passada de pai para filho (Êx 20, 2; 2,7 ; Dt 6, 20-24 ; 26.
5-10 ).
A
Bíblia: Livro
Depois
do livro da vida e motivados por circunstâncias diversas, começam a escrever
essas experiências de vida e de fé, inspirados por Deus. Houve textos que
tiveram diversas redações, antes da definitiva, conforme já vimos antes. Por
fim, colecionaram as diversas tradições orais e escritas
e ‘editaram’ os livros que chamamos Bíblia.
A
Bíblia escrita é, pois, a expressão das experiências vitais de um povo, vividas
na fé, ou seja; vida feita história, lida com fé. Deus falou, disse sua palavra
na vida, antes que no livro. Por isso dizemos que: A Bíblia como livro é
palavra de Deus porque antes a vida foi palavra de Deus.
Nós,
cristãos, cremos com Jesus, com os seus apóstolos e com a Igreja, que a Bíblia
toda é palavra de Deus. Por outro lado não podemos deixar de ver que
a Bíblia é também palavra de homens. E são dois aspectos de uma só realidade,
não podendo nós sacrificar um pelo outro.
É
palavra de Deus sem deixar de ser palavra de homens. E é palavra de homens sem
menosprezar o fato de ser palavra de Deus.
É
verdadeiramente palavra de Deus e verdadeiramente palavra de homens. Essa é
nossa fé. Algo assim como a fé que temos em Jesus, que é verdadeiro Deus e
verdadeiro homem.
É
preciso ter em mente sempre que os escritores bíblicos são autênticos autores
humanos, que expressam ideias muitas vezes puramente humanas e com formas e
modos de expressão correspondentes à cultura, geografia, desenvolvimento
social, história... de seu tempo e que por isso é possível que os livros da
Bíblia sofreram influências do jeito de ser, pensar e escrever (gênero
literário) de cada uma delas.
Gêneros
literários ou figuras literárias são os jeitos, as formas, como as pessoas
escrevem. E as utilizadas pelas que escreveram a Bíblia são as mesmas usadas
por outros escritores do mundo antigo pertencentes aos povos vizinhos do Egito
ou da Babilônia.
-
Narrações folclóricas - São aquelas tipicamente exageradas, de formas
épicas populares que tendem a realçar a figura de um herói, as façanhas
gloriosas de um povo: Veja a história de Sansão (Jz 13ss; 15,5), as astúcias de
Jacó (Gn 27 ;30,37ss), as descrições das pragas do Egito (Êx 9,29ss), etc.
-
Narrações novelescas - São aquelas com intenção de proporcionar um
ensinamento religioso ou moral: livros de Ester, Jonas, Tobias.
Nessas
narrações, que poderíamos chamar novelas históricas, o importante é o
ensinamento que se pretende transmitir. O elemento histórico é mais ou menos um
ponto de referência artificial, inexato, por vezes exagerado.
-
Midrash hagádico - É um tipo de narração que tem por base um fato
histórico, porém enfeitado, para impressionar e ajudar a passar uns bons
momentos (Sb 16-18; Êx 16,31).
Mesmo
as narrações estritamente históricas, os fatos que se contam sem enfeites são
julgados e valorizados do ponto de vista da fé (Josué, Juízes, Samuel, Reis).
Outras
vezes se faz como nas antigas vidas de santos: omite-se o que for desfavorável
à personagem, aproveita-se tudo o que for edificante, de forma ampliada e
enfeitada, para o crescimento do leitor (1 e 2cr; 2Mc).
-
Descrições apocalípticas - São aquelas repletas de expressões exageradas
(hipérboles) e numa linguagem extravagante (Dn 7ss; Is 13; 34).
-
Códigos de leis - Há também os códigos de leis (Êxodo e Levítico), visões (Amós
e Jeremias).
-
Coleções de provérbios, e de normas de educação e de vida (Provérbios,
eclesiástico e Sabedoria). São ensinamentos nascidos da experiência vivida, das alegrias, das tristezas, dos sofrimentos e das vitórias conquistadas.
-
Cânticos de amor, de guerra e de ação de graças...(Salmos, Cântico dos
Cânticos).
-
Paradoxos, ironias, fábulas, parábolas e alegorias (Gn 3, 22).
Por
fim, alguns capítulos da Bíblia registram fatos corretos, mas envoltos em
fabulas, mitos e lendas como veremos na história das origens (Gn 1-11).
No decorrer de nossos estudos sobre cada livro, todos essas peculiaridades serão abordadas,
-
A maior parte, das páginas da Bíblia devem ser entendidas como se
apresentam, sem necessidade de se recorrer aos gêneros literários.
-
Por outro lado, será preciso ter em mente, para entender o que Deus nos
quer dizer através da Bíblia, o que lembra o Concílio Vaticano II:
- É
preciso estudar com atenção o que os autores... quiserem dizer e dizem, por
meio dos gêneros literários próprios de sua época e cultura’ (DV 12).
- Não
esquecer que o povo de Israel estava dividido em tribos e que elas acampavam em
diferentes regiões e que por isso a mesma história desse povo da
Bíblia é narrada às vezes com dados, circunstanciais e cores distintas por
diferentes autores, em épocas diversas ( por exemplo, os dois relatos da
criação nos capítulos. 1 e 2 do Gênesis). Depois, houve a divisão entre os Reino do Norte e o Reino do Sul e a produção literária desses Reinos estava subordinada à realidade vivida em cada um deles. Vemos isso principalmente nos Livros dos Profetas.
A
concepção de mundo que eles tinham era muito diferente da nossa.
Para eles, a Terra era um disco plano que flutuava sobre o oceano profundo (Gn
1,6). Dele brotavam as fontes. O céu tinha forma de cúpula que descansava
sobre a superfície da Terra. Essa cúpula sustentava as águas de cima que caíam
em forma de chuva, quando se abriam suas janelas (Gn 7, 11-12). Os astros
pendiam dessa cúpula como lâmpadas (Gn 1, 7-8; Sl 104).
Encontram-se
relatos contraditórios de um mesmo acontecimento. Por exemplo, a conquista de Canaã,
segundo os doze primeiros capítulos de Josué, parece ter sido uma guerra
relâmpago. Mas de acordo com o capítulo primeiro do livro dos Juízes, tratou-se
de uma interminável penetração de tribos separadas.
Isso
se comprova também nos dois primeiros capítulos do Gênesis: quem foi criado
primeiro, o homem ou os animais? Quantos dias durou o dilúvio (Gn 7,12.24)? Quantos
casais de animais de cada espécie entraram na arca de Noé (Gn 6,19 - 20;
7, 2-3)?
A
Bíblia é um livro nada edificante nas descrições que mostram a realidade de
homens bastante primitivos, com graves erros morais, decisivamente humanos.
-
Abraão será chamado o ‘Pai da fé’, mas não terá dúvidas de
entregar sua mulher para salvar a própria vida(Gn 12, 10 – 13, 1).
-
Moisés é o ‘Libertador’, mas não acha melhor meio de remediar a injustiça
do que o assassínio (Êx 2,12).
-
O Rei Davi, o ‘Eleito de Deus’, antepassado de Jesus de Nazaré, engravida
a mulher de um de seus melhores generais e manda matá-lo à traição (2Sm
11, 4-15).
A
história real é, com frequência, nada edificante e a Bíblia narra essa história
de homens sensuais e brutos, a quem Deus, em sua pedagogia, se adapta, para
conduzi-los à salvação.
-
Na Bíblia são impostos deveres morais que hoje nos escandalizam como
imorais, mas que trazem em si a marca da condição humana e social daquela
época: dever de vingança (Gn 34, 25-31; Jz 8, 18 -21); a Lei de Talião (Êx 21,
24-25); a poligamia e a transmissão hereditária do harém (2Sm 12,8).
O
próprio sentimento religioso é às vezes humanamente deficiente e serve até para
orações de vingança. Você acha que é cristão o que se diz em certa parte da
bíblia contra os governantes daquela época, por mais malvados que tivessem
sido?
-
’Ó Deus, quebrai-lhe os dentes na boca, arrancai, Senhor as mandíbulas aos
jovens leões.
-
Desapareçam como água que escorre; embotem-se as suas flechas, se as
desferirem.
-
Passem como lesma que vai se dissolvendo, como feto abortivo de mulher, o
qual não viu o sol (Sl 58).
O
nacionalismo é bom, mas ás vezes pode ser exagerado e chegar a desejar
semelhantes malefícios para o inimigo:
-
’Bravo o que tomar os teus filhinhos e os esmagar contra uma pedra’(Sl
137).
O
que você acha daquele que, tendo sido acusado injustamente, pede a Deus para
seu inimigo:
-
’Sejam abreviados os seus dias, e receba outro o seu lugar. Fiquem
órfãos os seus filhos, e viúva a sua esposa.
- Ninguém
mais lhe mostre benevolência, nem haja quem se compadeça de seus órfãos.
- Reviva a
culpa de seus pais na lembrança do Senhor, e o pecado de sua mãe não se
apague’ (Sl 109).
Por tudo isso é que diz que a leitura bíblica não pode ser tirada de seu contexto. Cada povo tem seu modo de vida e seus costumes; cada época e contexto determinam esses modos de vida e costumes. Hoje, por exemplo, no mundo que chamamos de civilizado, vive-se uma onda de preservação ecológica na qual é proibido caçar e a pesca é muito restrita. Tentar impor estas regras para os indígenas que vivem quase que exclusivamente da caça e da pesca é condena-los à morte sem dó nem piedade. Portanto, devemos ter esse cuidado ao estudarmos a Bíblia, para não cairmos no radicalismo ou no fundamentalismo.
Os
autores bíblicos são autênticos autores humanos. Por isso, na
Bíblia, se expressam ideias puramente humanas. Não há ‘Palavra de Deus’ que não
venha mediada pela palavra dos homens. Práticas de uma determinada época poderá ser condenada em épocas posteriores e isso é norma. Faz parte do evoluir da humanidade.
‘Canon Bíblico’ é a lista de todos os livros da Bíblia. ‘Cânon’ vem
de ‘cana’ que era usada como metro, medida. Daí a palavra passou a ser usada
também como norma, regra de verdade ou de fé.
Os
livros da Bíblia foram chamados ‘canônicos’ a partir do século IV porque foram
reconhecidos como normativos para a fé e a vida dos fiéis.
-
O Cânon Alexandrino (ou longo) com 46 livros, presente na Bíblia Católica;
-
Cânon Palestinense (ou curto) com 39 livros, presente nas Bíblias Hebraica e
Protestante.
Tendo
em vista a aceitação ou não no Cânon, os livros da Bíblia são chamados
Protocanônicos ou Deuterocanônicos.
-
Protocanônicos - São os livros que estão nas três Bíblias (hebraica, católica e
protestante). Isto é, aqueles livros que foram considerados inspirados por
Deus, sempre e por todos.
-
Deuterocanônicos - São os livros cuja inspiração foi objeto de debates e
que são aceitos por uns e rejeitados por outros.
Encontram-se somente na Bíblia Católica.
-
Os do Antigo Testamento são: Tobias, Judite, Baruc Sabedoria,
Eclesiástico, 1 e 2 Macabeus. E alguns textos: Ester 10, 4-16, 24; Daniel 3,
24-90; 13-14.
-
Os do Novo Testamento são: Hebreus, Tiago, Segunda Carta de Pedro, Segunda
e Terceira Cartas de João, Judas e Apocalipse.
Os deuterocanônicos do Novo Testamento foram rejeitados por Lutero como sendo livros inspirados. Posteriormente, eles aparecem na versão da Bíblia do Rei James e também na Tradução brasileira de João Ferreira de Almeida, uma das mais respeitadas pelos cristão protestantes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário